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Homem ou coelho?
C.S. Lewis
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Pode-se ter uma boa vida sem se acreditar no cristianismo?
Esta é a questão sobre a qual me pediram para escrever e, imediatamente antes
de tentar respondê-la, tenho um comentário a fazer. A questão parece ter sido
formulada por uma pessoa que diz a si própria, “Não me importo se o cristianismo é ou não verdadeiro. Não estou interessado em descobrir se o universo real é
mais parecido com o dos cristãos ou com o dos materialistas. Tudo em que estou
interessado é em ter uma vida boa. Vou escolher minhas crenças não porque as
penso verdadeiras mas porque as considero úteis.”
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Francamente, acho difícil alguém simpatizar com
esse estado mental. Uma das coisas que distingue o homem de outros animais é
que ele quer conhecer as coisas, quer descobrir o que é a realidade,
simplesmente por conhecer.[1] Quando esse desejo é, em alguém,
completamente sufocado, penso que esse alguém tenha se tornado algo menos que
um homem. De fato, não acredito que nenhum de vocês tenha perdido esse
desejo.
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Muito provavelmente, pregadores tolos, ao sempre
dizerem o quanto o cristianismo ajudará a vocês e o quanto ele é bom para a
sociedade, tenham levado vocês a esquecerem que o cristianismo não é um
comprimido que se toma para algum mal. O cristianismo alega ter uma
explicação para fatos – alega poder dizê-los o que é o universo real. Sua
explicação sobre o universo pode ser verdadeira, ou pode não ser, e uma vez que
a questão está à sua frente, então sua natural curiosidade deve fazê-los querer
conhecer a resposta. Se o cristianismo não é verdadeiro, então
nenhum homem honesto desejará nele acreditar, não importa o quão útil ele seja:
se ele é verdadeiro, cada homem honesto desejará nele acreditar, mesmo se isso
não o ajudar de forma alguma.
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Tão logo percebemos isso, percebemos algo mais. Se
o cristianismo for verdadeiro, então é muitíssimo improvável que aqueles que
nele acreditam e aqueles que nele não acreditam estejam igualmente equipados
para ter uma boa vida. O conhecimento dos fatos deve fazer diferença para as
ações realizadas.
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Suponha que você encontre um homem a ponto de morrer
de fome e queira fazer algo de bom para ele. Se você não tivesse nenhum
conhecimento da ciência médica, você iria, provavelmente, dar a ele uma grande
quantidade de comida sólida; e, como resultado, seu homem morreria. Isso é o
que significa agir no escuro. Da mesma forma, um cristão e um não-cristão
devem, ambos, desejar fazer o bem a outros homens. Um deles acredita que os
homens são eternos, que eles foram criados por Deus e, de tal forma, que eles
só podem encontrar sua verdadeira e permanente felicidade na união com Deus,
que eles se perderam terrivelmente no caminho, e que a fé obediente em Cristo é
o único caminho de volta. O outro acredita que os homens são um resultado
acidental do trabalho cego da matéria, que eles começaram como meros animais e,
mais ou menos, evoluíram permanentemente, que eles irão viver por volta de
setenta anos, que sua felicidade é totalmente atingida por meio de bons
serviços sociais e por organizações políticas, e que tudo o mais (p. ex.,
vivisseção, controle de natalidade, o sistema judicial, educação) deve ser
avaliado como “bom” ou “mau” simplesmente na medida em que ajuda ou atrapalha
aquele tipo de “felicidade”.
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Ora, há muitas coisas que esses dois homens
concordam em fazer para seus semelhantes. Ambos aprovariam sistemas de esgoto e
hospitais eficientes e uma dieta saudável. Mas, cedo ou tarde, a diferença de
suas crenças produziria diferenças em seus propósitos práticos. Ambos, por
exemplo, poderiam ser muito preocupados com a educação: mas os tipos de
educação que eles desejariam para o povo seria obviamente muito diferentes.
Onde o materialista perguntaria, a respeito de uma proposta de ação, apenas se
“Ela aumentaria a felicidade da maioria?”, o cristão teria a dizer, “Mesmo que
ela aumente a felicidade da maioria, não podemos realizá-la. Ela é injusta.” E
todo o tempo, uma grande diferença atravessaria todas as suas políticas. Para
o materialista, as coisas como nações, classes, civilizações devem ser mais
importantes que os indivíduos, porque os indivíduos vivem, cada um, míseros
setenta anos e o grupo pode durar séculos. Mas para o cristão, indivíduos são
mais importantes, pois eles vivem eternamente; e raças, civilizações etc. são,
em comparação, criaturas de um dia.
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O cristão e o materialista têm crenças diferentes
sobre o universo. Eles não podem estar ambos certos. Quem estiver errado agirá
de uma forma que não se adequa ao universo real. Conseqüentemente, com a melhor
das boas intenções do mundo, ele estará ajudando seus semelhantes a se
destruírem.
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Com a melhor das boas intenções do mundo … então
não será culpa sua. Certamente Deus (se houver um Deus) não punirá um homem
pelos seus erros “honestos”? [2] Mas isso era tudo o que você pensava? Você
está preparado para correr o risco de trabalhar no escuro em toda a sua vida e
fazer um infinito mal, desde que alguém nos assegure que nossa própria pele
estará a salvo, que ninguém nos punirá ou nos culpará? Não acreditarei que o
leitor está neste nível. Mas mesmo se estiver, há algo a ser dito.
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A questão diante de nós não é “Alguém pode ter uma
boa vida sem o cristianismo?”. A questão é, “Você pode?” Todos sabemos que tem
havido bons homens que não foram cristãos; homens como Sócrates e Confúcio que
nunca ouviram falar de cristianismo, ou homens como J.S. Mill que muito
honestamente não poderia nele acreditar. Suponha que o cristianismo seja
verdadeiro. Esses homens estavam numa ignorância ou erro honesto. Se suas
intenções fossem tão boas quanto suponho (pois, claro, não posso ler os
segredos de seus corações) espero e acredito que a misericórdia de Deus
remediará os males que suas ignorâncias, deixadas a si mesmo, naturalmente
produziriam em si próprios e naqueles que eles influenciaram. Mas o homem que me pergunta, “Não posso viver uma boa
vida sem acreditar no cristianismo?” não está na mesma posição. Se ele não
tivesse tido notícia do cristianismo ele não estaria formulando essa questão. Se, tendo tido dele
notícia, e o tendo considerado seriamente, ele tivesse decidido que ele não era
verdadeiro, então, novamente, ele não estaria formulando a questão. O homem que
formula a questão ouviu falar do cristianismo e não está certo, de forma
alguma, de que ele não seja verdadeiro. Ele está realmente perguntando, “Será
que eu preciso me preocupar com ele? Será que eu não posso apenas esquecer a
coisa, sem cutucar a onça com a vara curta, e simplesmente me preocupar com a
parte ‘boa’? Não são as boas intenções suficientes para me manter seguro e sem
culpa, sem a necessidade de bater naquela temerária porta e ter de verificar
quem estará, ou não, lá dentro?”
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Para tal homem, pode ser suficiente responder que
ele está realmente pedindo para ficar com a parte ‘boa’ antes de ele ter feito
o melhor de si para descobrir o que ‘boa’ significa. Mas essa não é toda a
estória. Não precisamos perguntar se Deus o punirá por covardia ou preguiça;
ele próprio se punirá. O homem está se esquivando. Ele está tentando
deliberadamente não saber se o cristianismo é verdadeiro ou falso, porque ele
prevê problemas sem fim se ele se provar verdadeiro. Ele se parece com o
homem que deliberadamente se ‘esquece’ de consultar a lista de tarefas do dia
porque, se o fizesse, poderia encontrar seu nome relacionado a alguma tarefa
desagradável. Ele se parece com o homem que não verifica sua conta bancária
porque teme o que possa descobrir lá. Ele se parece com o homem que não vai ao
médico quando uma misteriosa dor aparece, porque teme o que o doutor pode lhe
contar.
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O homem que permanece um incréu por
tais razões não está na situação de um erro honesto. Ele está
numa situação de erro desonesto, e
essa desonestidade se difundirá por todos os seus pensamentos e ações: uma
certa volubilidade, uma vaga preocupação no fundo de sua mente, um embotamento
de toda a sua sutileza mental, resultará. Ele terá perdido sua virgindade
intelectual. Rejeição honesta de Cristo, embora seja um erro, será perdoado ou
curado – “Todo aquele que falar contra o Filho do Homem, ser-lhe-á dado
perdão.” [3] Mas evitar o Filho do Homem, olhar para o outro lado, fazer de
conta que você não O notou, ficar repentinamente absorvido com algo do outro
lado da rua, deixar o telefone fora do gancho porque pode ser Ele do outro lado
da linha – isso é uma coisa muito diferente. Você pode não estar certo ainda se deve ser um cristão;
mas você sabe muito bem que deve ser um Homem, não uma avestruz, escondendo sua
cabeça na areia.
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Mas mesmo assim – pois a honra intelectual desceu a
um nível muito baixo em nossos dias – escuto alguém lamuriando com a questão,
“Ele me ajudará? Ele me fará feliz? Você pensa mesmo que minha situação
melhorará se me tornar cristão?” Bem, se você precisa mesmo de minha resposta,
ela é “Sim.” Mas eu não gostaria de dar uma resposta neste ponto. Eis aqui a
porta atrás da qual, segundo alguns, o segredo do universo está esperando por
você. Ou isso é verdade ou não é. E se não for, então o que a porta realmente
esconde é simplesmente a maior fraude, a maior empulhação jamais registrada.
Não é, obviamente, tarefa de todo homem (um homem, não um coelho) tentar
descobrir o que está atrás da porta e, então, se devotar com todas as suas
energias a obedecer e honrar esse tremendo segredo ou a expor e destruir essa
gigantesca impostura? Desafiado por tal situação, poderá você permanecer
totalmente absorvido com seu próprio abençoado ‘desenvolvimento moral’?
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Certo, o cristianismo lhe fará bem – muito mais
do que você alguma vez desejou ou esperou. E
o primeiro pedacinho de bem que ele lhe fará é martelar em sua cabeça (e você
não gostará disso!) o fato de que o que você até agora chamou de “bom” – tudo
aquilo sobre “ter uma vida decente” e “ser bom” – não é bem o acontecimento
magnificente e da maior importância que você supunha. Ele lhe ensinará que, de
fato, você não poderá ser ‘bom’ (não por vinte e quatro horas) contando apenas
com seus próprios esforços morais. E então ele lhe ensinará que mesmo que você
pudesse, você ainda não teria atingido o propósito pelo qual foi criado. A
mera moralidade não é o fim da vida. Você foi feito para algo muito diferente.
J.S. Mill e Confúcio (Sócrates estava muito mais próximo da realidade)
simplesmente não sabiam o que significa a vida. As pessoas que continuam a
perguntar se não se pode ter uma vida decente sem Cristo, não sabe o que é a
vida; se eles soubessem, eles saberiam que ‘uma vida decente’ é um mero
mecanismo comparado com a coisa de que nós homens somos feitos. A moralidade é
indispensável: mas a Vida Divina, que se dá a nós e que nos convida a ser
deuses, planeja algo para nós em que a moralidade será nele absorvida. Temos de
ser re-feitos. Todo o coelho que existe em nós desaparecerá – o coelho
preocupado, escrupuloso e ético e também o covarde e sensual. Sangraremos e
guincharemos na medida que punhados de pêlos forem arrancados; e então,
surpreendentemente, descobriremos por sob o pêlo uma coisa que nunca antes
imaginamos: um Homem real, um deus imemorial, um filho de Deus, forte,
radiante, sábio, bonito e imerso em alegria.
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“Mas quando vier o que é perfeito, será abolido o
que é imperfeito” [4] A idéia de atingir ‘uma vida boa’ sem Cristo é baseada
num duplo erro. Primeiramente, não podemos tê-la; e em segundo lugar, ao
estabelecer ‘uma vida boa’ como nosso objetivo, perdemos a verdadeira razão de
nossa existência. A moralidade é uma montanha que não podemos subir por nossos
próprios esforços; e se pudéssemos, apenas pereceríamos no gelo e no ar
irrespirável do cume, na falta daquelas asas com as quais o resto da jornada
terá de ser empreendida. Pois é de lá que a ascensão real começa. As cordas e
os machados ‘já eram’ e o resto é uma questão de voar.
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Extraído do livro God in the dock [Deus no banco
dos réus.]
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[1] A primeira frase da Metafísica de Aristóteles é
“Πάντες ἄνθρωποι τοῦ εἰδέναι ὀρέγονται φύσει.” [Todos os homens têm, por natureza, desejo
de conhecer.] (N. do T.)
[2] A expressão aqui é ‘honest error’ que tem a
acepção de erro involuntário, mas também do produto de um esforço honesto de
entendimento que, no entanto, está marcado pelo erro. (N. do T.)
[3] Lucas, XII, 10.
[4] I Cor. XIII, 10.
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*Fonte: Artigo retirado do blog do Carmadélio, da Comunidade
Shalom.
Link: http://www.comshalom.org/blog/carmadelio/26560-ser-homem-ou-ser-coelho-pode-se-ter-uma-boa-vida-sem-a-fe-crista